Grupo que lidera o atual ciclo político no Ceará passa pelo momento mais turbulento e terá nas eleições de 2024 um momento decisivo
Desde que um integrante do grupo chegou ao cargo mais alto do Executivo do Ceará em 1º de janeiro de 2007, a família Ferreira Gomes não enfrentava um momento tão turbulento na política como o iniciado na segunda metade do ano passado.
O clã lidera um dos projetos políticos mais duradouros do Ceará, mas tem colecionado desgastes nos últimos anos. Esses percalços têm se tornado mais frequentes desde meados de 2022 e, conforme apontam analistas políticos, colocam em xeque o poder do grupo, que deve ter, nas próximas eleições, um momento decisivo para a manutenção de sua força política.
A eleição de Cid Gomes (PDT) como governador do Ceará em 2006 coroou uma mudança de patamar dos Ferreira Gomes, que até então tinham como nome de maior projeção o ex-ministro Ciro Gomes (PDT). Além dos familiares, o grupo tinha — e passou a agregar desde então — outras lideranças políticas, algumas com laços familiares, mas a maioria apenas por afinidade ideológica.
“Falamos em grupos políticos e não em partidos porque os partidos são frágeis. Esses grupos são arranjos políticos que possuem uma liderança e apresentam resultados eleitorais, têm uma marca, possuem temporalidade e afinidade”, explica o cientista político Cleyton Monte, que também é professor universitário e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
ABALO NO PODER
Essa afinidade, no entanto, dá sinais de abalo desde a pré-campanha eleitoral do ano passado, quando uma ala do partido defendeu que a então governadora Izolda Cela (sem partido) disputasse a reeleição. Essa ideia também era defendida por siglas aliadas, como o PT, o MDB e o PP. Outro grupo, sob liderança do então candidato à presidência Ciro Gomes (PDT), defendia que o ex-prefeito Roberto Cláudio (PDT) encabeçasse a chapa.
Em meio ao impasse, Cid Gomes, principal responsável por articular as chapas governistas desde 2006, impôs um “autossacrifício” e não participou das articulações. Com o partido rachado, em pé de guerra e sem uma liderança definida, Roberto Cláudio foi lançado como candidato. A chapa do PDT, no entanto, foi derrotada pelos ex-aliados do PT, que romperam com os pedetistas e lançaram Elmano de Freitas (PT), sob as bênçãos de Camilo Santana (PT), ex-governador e atual ministro da Educação.
Nacionalmente, esse grupo derrotado no Ceará acumulou mais um revés com a derrota de Ciro Gomes (PDT) para presidente, ficando em quarto lugar. O pleito também afastou o pedetista de antigos aliados e até de eleitores históricos.
SINAIS DO FIM?
Para a professora de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Monalisa Torres, só essa sequência de episódios já reúne indícios de que a continuidade do grupo Ferreira Gomes está ameaçada.
A pesquisadora aponta elementos que fundamentam a existência de ciclos políticos, como a força da imagem de um líder, “que imprime não só políticas públicas, mas também um perfil que marca uma era”. “Tem também a capacidade de articulação do líder, que personifica e dá coesão ao grupo. Quando um líder perde essa capacidade de composição, de indicar candidatos vitoriosos, é um segundo indicativo”, lista.
“No caso dos Ferreira Gomes, a escolha do sucessor mostrou um dos indicativos mais fortes do fim de uma era. Cid estava sem capacidade de controlar as decisões dentro do próprio grupo, tomando como pressuposto que ele era esse líder (…). Então o PDT racha, e ele não consegue indicar um sucessor nem manter a coalizão unida”
MONALISA TORRES
Professora de Teoria Política da Uece
Monalisa aponta ainda que, paralelamente, viu-se emergir outra liderança do grupo: o ex-governador e hoje ministro da Educação, Camilo Santana. “Ele recentemente ocupou um cargo no Executivo, então ele consegue ter influência sobre a máquina pública, coisa que o Cid, mesmo sendo senador, não tem mais a mesma influência, o que inviabiliza inclusive a manutenção dessa base eleitoral e desse condomínio de partidos e lideranças”, analisa a professora.
NOVA ESCALADA DA CRISE
Esses indícios apontados pela pesquisadora e professora, no entanto, não são os únicos. No mês passado, a crise interna do PDT passou por um aprofundamento com a maior liderança estadual da sigla, Cid Gomes, criticando aliados e até o próprio irmão, Ciro. Na escalada da crise, Cid também virou alvo daqueles que até então eram seus liderados.
Em entrevista ao podcast ‘As Cunhãs’, divulgado no final de fevereiro, o senador avaliou que Ciro e Roberto Cláudio precipitaram-se nas eleições do ano passado. Segundo Cid, o irmão fez política com o “fígado” e o ex-prefeito “achou que o céu era perto” ao tentar disputar o Governo do Ceará. Ele ainda cobrou o prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT), que as ações da Prefeitura “não fiquem apenas na Aldeota”.
A resposta a Cid saiu da Câmara de Fortaleza. Pelo menos oito vereadores usaram a tribuna para contra-atacar o pedetista questionando desde a relação do ex-governador com a Capital até a saúde e a vitalidade dele. Um dos parlamentares que puxou coro contra o senador foi o próprio líder do Governo Sarto, Carlos Mesquita (PDT). A lista inclui ainda Lúcio Bruno (PDT), Paulo Martins (PDT) e Didi Mangueira (PDT).
Esse tipo de ataque ao principal líder do partido e os rachas internos da sigla podem ser fatais para uma liderança, avalia o cientista político Cleyton Monte.
“O fim dos ciclos políticos ocorre, basicamente, por ruptura e desgaste. Os ciclos duram o tempo em que se consegue acomodar as lideranças. Quando começa a se fragmentar, quando o líder principal é questionado e quando essa liderança vai para longe do poder, o grupo torna-se mais fraco”
CLEYTON MONTE
Professor universitário e pesquisador
Assim como a professora e pesquisadora Monalisa Torres, Cleyton Monte projeta que essa crise pode selar o fim do clã político liderado pelos Ferreira Gomes. “Acredito que sim, porque em outras crises ainda havia uma unidade dos irmãos, que discordavam pontualmente, mas conseguiam marchar juntos. Agora não vemos essa integração, os próprios liderados já não seguem seus líderes”, destaca.
CICLOS POLÍTICOS
A análise de que essa liderança dos Ferreira Gomes está sob ameaça toma como base o histórico de ciclos políticos no Ceará, que ascenderam, arregimentaram aliados e enfrentaram desgastes, rupturas e questionamentos até perderem força.
“O que precipita o fim de um ciclo é o início de outro. Só teria como existir Tasso Jereissati com o fim dos coronéis, só teria como ter existido os Ferreira Gomes com o fim da Era Tasso, então não é algo de hoje, antes da ditadura militar tivemos grupos políticos como o do Parsifal Barroso, do Juarez Távora e do Carlos Jereissati, que usavam suas lideranças para comandar grupos”, afirma Cleyton Monte.
No Ceará, grandes ciclos políticos abrangem os últimos séculos desde a Primeira República. Uma das maiores hegemonias surge logo após a Proclamação da República, entre o fim do do XIX e o início do XX. Nos anos de 1896 e 1912, o Estado foi comandado pelo oligarca Nogueira Accioly, que teve o governo marcado pelo autoritarismo e por favorecer familiares.
OLIGARQUIA ACCIOLY
A força política dele era tamanha que até com adversários conseguia fazer acordos. Foi assim com Pedro Borges, que venceu as eleições de 1900, mas acabou cedendo a um pacto de alternância de poder com o oligarca. Naquele ano, Accioly foi eleito senador, mas retornou ao comando do Estado em 1904 por conta desse acordo.
Ao todo, a oligarquia de Nogueira Accioly durou 16 anos, chegando ao fim por conta de desgastes com a população, que passou a protestar na Capital até que o político renunciasse ao cargo em janeiro de 1912.
CORONELISMO
Na ditadura militar, um novo ciclo político surge com os coronéis César Cals, Adauto Bezerra e Virgílio Távora, que comandaram o Ceará entre 1963 a 1978. Assim como ocorreu nacionalmente, esse período é marcado por obras grandiosas e de caráter desenvolvimentista, ao mesmo tempo em que são preservadas práticas tradicionais de fazer política, com troca de favores e empreguismo.
Alçados e sustentados pelo regime militar, o coronelismo no Ceará também chegou ao fim em consonância com o fim da ditadura. No fim dos anos 1980, mudanças sociais passaram a questionar o prestígio dos coronéis. Com os sinais do fim do ciclo, os coronéis decidiram lançar Gonzaga Mota no pleito de 1982, que saiu vitorioso, mas foi pouco a pouco foi se afastando dos padrinhos políticos.
MUDANCISMO
Um novo ciclo político no Ceará se iniciaria logo em seguida sob comando do ex-senador cearense Tasso Jereissati (PSDB), eleito governador em 1987. Jovem empresário, Tasso surge sob influência de movimentos liberais em defesa da modernização do Ceará.
Conforme narrou o cientista político Cleyton Monte na série de reportagens ‘Influências Políticas’, publicada no Diário do Nordeste, o tucano implantou um novo modelo de gestão no Estado com a implementação do “mudancismo”, em detrimento ao “coronelismo”. Ao assumir, o novo governador promove uma série de demissões e enxuga a máquina pública, com o corte de gastos e promessas de colocar um fim no empreguismo.
Tasso deixou o Governo do Ceará apenas em 2002, quando renunciou para disputar uma vaga no Senado Federal. Ele, no entanto, ainda conseguiu eleger seu sucessor, o ex-governador Lúcio Alcântara. Quatro anos depois, o então senador tucano viu seu próprio partido dividido e ele mesmo apoiou informalmente a candidatura de Cid Gomes para o Governo do Ceará, ajudando a derrotar o também tucano Lúcio Alcântara.
FERREIRA GOMES
A chegada de Cid ao Governo marca o início de um novo ciclo na política cearense. Ao lado do irmão, Ciro Gomes, adota um modelo de fazer política que abarca amplos arcos de aliança, incluindo adversários históricos. Uma das chaves para entender esse grupo está na relação que suas lideranças estabelecem com o PT.
O próprio Cid chega ao Executivo estadual com apoio da então prefeita de Fortaleza, Luizianne Lins (PT). A relação entre os dois foi rompida em 2012, selando o fim da aliança entre o grupo Ferreira Gomes em Fortaleza. Uma das características desse novo ciclo é o surgimento de outras lideranças sob influência de Ciro e Cid. Na lista estão, por exemplo, Camilo Santana, Izolda Cela, Roberto Cláudio e José Sarto.
A nível estadual, a aliança entre os Ferreira Gomes e o PT foi mantida até o ano passado, quando a disputa interna entre no PDT, sigla onde estão os líderes desse ciclo, colocaram integrantes das duas legendas em rota de colisão.
ELEIÇÕES DE 2024
Os pesquisadores Cleyton Monte e Monalisa Torres concordam em apontar o nome do ministro da Educação, Camilo Santana, como uma possível liderança que ascende desse grupo. “Os Ferreira Gomes abriram espaço para outras lideranças, mas tinha um certo controle sobre as decisões. A força deles começou a entrar em decadência porque um desses liderados ganhou mais luz que eles”, aponta Monte.
Para Monalisa Torres, outra evidência dessa força é que novas lideranças tentam se associar a imagens do petista, por exemplo, não mais a Cid ou Ciro. “O próprio Elmano traz esse simbolismo de tentar se espelhar no seu antecessor, resgatando um perfil mais apaziguador até na própria estética”, afirma.
Para ela, a eleição de 2024 será decisiva para os rumos do grupo Ferreira Gomes.
“Esses grandes ciclos não se solidificam sem uma base política forte dos prefeitos. Sem apoio deles é impossível manter um grupo político por tanto tempo e com tanta força. Foi assim com Tasso, é assim com os Ferreira Gomes”
MONALISA TORRES
Professora universitária
Ela relembra que, quando o PSDB comandava o Estado, mais de 80 prefeitos eram tucanos. No caso do PDT, sob batuta de Cid Gomes, foram mais de 60 prefeitos eleitos.
“Os prefeitos simbolizam essa influência e a necessidade de construção da base eleitoral, uma base que é via de mão dupla. Se, por um lado, o governador precisa do apoio do prefeito para eleger, se reeleger ou eleger o sucessor, por outro lado, essas alianças dos prefeitos com o governador facilitam a aplicação de verbas, o envio de recursos para os municípios e a implementação de políticas públicas nessas cidades”, conclui.
DN