Há pouco mais de 40 anos, um pequeno vilarejo incrustado no meio de uma vasta região de dunas, no Litoral Norte do Ceará, tornou-se mundialmente famoso. A Vila de Jericoacoara atrai milhares de visitantes todos os anos e tem uma rotina intensa do amanhecer ao anoitecer. Mas, neste ano, uma agitação paralela surgiu com a publicização de uma disputa por terras da área, entre uma empresária e o Governo do Ceará.
Iracema Correia São Tiago, 78, já apresentou documentos que comprovam seu domínio sobre 80% do terreno da Vila. No entanto, moradores contestam os documentos e alegam que nem ela nem o ex-esposo, dono anterior, nunca se apresentaram como proprietários. Por enquanto, o processo extrajudicial está suspenso por tempo indeterminado para novas manifestações das partes.
O resultado do processo vai ditar o futuro de uma região centenária. Administrativamente, a Vila faz parte do território de Jijoca de Jericoacoara, município criado somente em 1991 após se emancipar. Oficialmente, a cidade foi um distrito de Acaraú entre 1923 e 1985, e depois foi anexada a Cruz.
Contudo, a história de Jericoacoara começa bem antes. Segundo o memorial da Prefeitura Municipal, a enseada já era indicada em cartas geográficas do século XVII. À época, era território de indígenas da etnia Tremembé e, por décadas, serviu como base de apoio para portugueses que lutavam contra “piratas” franceses pelo domínio do litoral.
Porém, como a área é cercada por várias dunas e serrotes, a ocupação de exploradores foi dificultada ao longo do tempo. A história só veio mudar com a chegada de um grupo de cinco cearenses fugindo das agruras da seca do interior. No novo local, encontraram fartura de peixes e decidiram chamar as famílias para se estabelecerem de vez.
Um deles era Manoel Martins de Oliveira, falecido aos 114 anos, considerado pela família o fundador da Vila. Segundo a neta Tereza Martins, 62, o avô ensinou o ofício da pesca ao pai, José Diogo Martins, que viveu até os 101 anos.
Em tantos anos de vivência, as famílias nativas contam que não conheceram os Machado. “A gente conhecia rua por rua, até as dunas, e todos os tios e primos. Sabia cada morador e nunca conhecemos a Iracema. De quem ela comprou essa terra? Nunca apareceu o dono que vendeu pra ela”, questiona Tereza.
Peixe com farinha
Até a década de 1970, os habitantes da Vila eram, na maioria, pescadores artesanais, agricultores de subsistência e artesãos. Jericoacoara era acessada pelo mar, em canoas, pelos portos de Camocim e Acaraú, com as quais mantinha relações comerciais. Já o caminho pelas dunas era feito a pé ou no lombo de animais.
À época, também existia um intercâmbio entre os pescadores, fornecedores de peixes, camarões e lagostins, e agricultores das comunidades vizinhas, que os trocavam por milho, mandioca, manga e laranja, dentre outros produtos da terra.
Foi nesse ambiente natural que cresceu Lucimar Marques, atual presidente do Conselho Comunitário de Jericoacoara. “Era tudo muito simples. A gente vivia só do peixe assado e da farinha, almoçava e jantava isso. No domingo, é que minha mãe matava uma galinha ou meu pai tinha dinheiro para comprar criação”, lembra.
Tinha famílias bem pobres que não tinham condição de nada. Passavam muita fome, quem sustentava era o pessoal. Sobreviviam com dificuldade.Lucimar Marques
Presidente do CCJ
Nas residências, a iluminação era feita à base de querosene nas lamparinas, já que a energia elétrica só chegou à comunidade em 1998. Ela passou a ser provida por uma rede subterrânea, substituindo os geradores que iluminavam apenas alguns pontos da localidade.
José Diogo, 68, põe mais peças nesse quebra-cabeças. Sabia de cor onde começava e terminava a vila, desenvolvida entre o Cemitério Santo Antônio e as dunas. Os quintais eram grandes, e cerca mesmo só para os animais de criação não fugirem. Aqui e acolá, aos fins de semana ou do mês, alguém contratava um sanfoneiro para animar a noite.
O ex-pescador trabalhou por 35 anos no mar, em Jijoca, Camocim, Fortaleza e até no Pará. Mas o desejo mesmo era de voltar para o “meu lugar”. Casou, formou família e mora até hoje na residência recebida de herança do sogro, com papel da casa e tudo.
A praia era uma coisa linda, você andava naquele areal branco, a maré lavava tudo, o vento levava as dunas.José Diogo
Ex-pescador e nativo da Vila
“Nunca pensei em sair daqui. Passei mais de 10 anos no mundo, mas meu desejo era voltar. Aqui, não tem quem mexa com ninguém”, afirma.
O saudosismo é compartilhado por Tereza Martins, para quem a Vila é toda uma família só. Afinal, segundo ela, somente a prole do avô Manoel permaneceu no local e gerou descendência permanente. “Os outros amigos foram embora”, constatou.
Para ficar, precisaram se reinventar. A mãe mandava buscar lenha no extinto povoado do Junco, para fazer fogo e torrar café. Na viagem a pé, os irmãos também traziam sobre a cabeça os frutos que encontravam no caminho: caju, cajá, murici, jatobá.
Foram eles que ajudaram a plantar outras espécies de vegetais para diversificar a paisagem, praticamente tomada por coqueiros e arbustos.
Moça feita, Tereza também assumiu um lugar no barco. Aprendeu a ir para o mar e a pescar. Até hoje, exibe orgulhosa o segundo camarão-tigre, de cerca de 400 gramas, que retirou das águas. O primeiro, garante, veio ser estudado por uma universidade em Fortaleza. “E isso não é história de pescador”, ri ela, que hoje toca um restaurante.
Mochileiros e gringos
O “paraíso”, contudo, não ficaria intocado por muito tempo. Já no fim dos anos 1970, o turismo de aventura começou a ganhar força no Brasil, e Jericoacoara foi enfim “descoberta” por mochileiros que buscavam novas trilhas.
Tereza ainda recorda os primeiros: três aventureiros vindos de São Paulo atravessaram as dunas e pediram para ficar na casa do morador Chico André. “As pessoas nem chegavam perto porque tinham medo. Os caras botaram as barracas no quintal dele e ficaram”.
Não demorou para o boca a boca sobre as maravilhas de Jericoacoara crescer. O fluxo de visitantes aumentou, chegando andando, a cavalo ou de barco. A população, humilde e vendo o negócio da pesca decair, aprendeu que dali poderia vir uma nova fonte de renda.
“Era uma briga porque os carros chegavam meia-noite e o pessoal ficava puxando um pra cá e outro pra lá, pra levar para suas casas”, complementa Lucimar Marques. “A comida que a gente servia era peixe e goma. Todos os dias saíam, alguns iam pescar e eles mesmos faziam”.
No fim dos anos 1980, os primeiros estrangeiros já estavam fixados, vindos da Suíça, da Inglaterra e da Alemanha. O modus operandi era parecido: vinham passar férias, se apaixonavam pelo lugar e retornavam de vez.
Pouco a pouco, a estrutura de atendimento aumentou e as residências foram adaptadas como pequenas pousadas; algumas tinham apenas redes em vez de camas, e a descarga no sanitário tinha que ser acionada com bomba d’água.
Com a popularização, em 1984, o Governo brasileiro decretou Jericoacoara como Área de Proteção Ambiental (APA), a fim de preservar as enormes dunas móveis, lagoas de água cristalina, manguezais, coqueirais, praias de enseada com mar calmo, praias rochosas e cavernas.
O empresário gaúcho Fábio Nobre chegou à comunidade em 1987, aos 19 anos. Filho de um comerciante que se mudou para Fortaleza, decidiu abrir mão do Ensino Superior e empreender. “Foi a época que Jericoacoara começou a ficar famosa, então comecei a organizar excursões. Vim, fiz uma pousada e estou aqui até hoje”, resume.
Quando começou o turismo, já existia uma restrição ao desenvolvimento pelas regras da APA. De 1992 a 2000, teve uma moratória que proibia a construção de pousada com piscina. Podia fazer casa, mas não pousada, então o impacto era baixo.Fábio Nobre
Empresário
Ele considera-se da primeira geração de empresários do local, “a maioria orgânico, que se aposentava e decidia montar uma pousada”. Para ele, foi essa calmaria que permitiu à Vila se desenvolver de uma forma mais sustentável.
“Isso deu tempo para que os nativos, antes só pescadores, entendessem o processo. Começaram a hospedar turistas nas casas, fizeram chalezinhos para alugar, abriram restaurantes e lojinhas”, explica.
Em 1991, Jijoca enfim deixou de ser distrito de Cruz e tornou-se município autônomo. Poucos anos depois, em 1995, teve início o processo de regularização fundiária feito pelo Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), a fim de fornecer o “papel da casa” a quem já habitava a região.
Desenvolvimento expressivo
Em 2002, o Governo Federal criou o Parque Nacional (Parna) de Jericoacoara, impondo diversas restrições ao entorno da Vila para garantir a preservação ambiental da área. Em 2007, a APA criada em 1984 foi extinta e a área do Parque foi ampliada. Quatro anos depois, foi aprovado o Plano de Manejo, documento descritor do que pode e o que não pode ser feito dentro do Parque.
Mesmo com as restrições, o fato é que Jericoacoara ganhou popularidade nas últimas duas décadas. Só em 2023, o Parque recebeu mais de 1,4 milhão de visitas, segundo levantamento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão gestor dos parques federais.
Em visita à localidade, há uma semana, o Diário do Nordeste constatou não só brasileiros, mas uma presença massiva de estrangeiros, fossem ingleses, alemães, franceses, espanhois e argentinos, dentre outras nacionalidades, circulando pelas ruas de terra ou em buggies.
Muitos deles decidem ficar. Foi o caso de uma empreendedora chilena com quem a reportagem conversou. O que a atraiu? “O estilo de vida mais simples. Aqui se precisa de menos, e tem a natureza e o kitesurf. Eu queria aprender kite e me falaram desse lugar. Também queria trocar o estilo de vida, porque fui criada em cidade”, relata.
Apesar dos investidores de fora do Brasil, Fábio Nobre acredita que a Vila de Jeri se diferencia de outros locais turísticos brasileiros pela permanência de empresários nativos.
“Tem lugar que fica famoso e não sobra ninguém da população original. Em Jeri, a comunidade é muito especial. O Conselho Comunitário já tem 40 anos e isso demonstra uma comunidade madura, que sabe o que quer”, entende.
DN